Manaus - As Muitas Cidades, de Aldísio Filgueiras
O livro Manaus - As Muitas Cidades, de Aldísio Filgueiras foi publicado em 1994 e contém poemas de sua produção dos anos 1980 e início dos anos 1990. Trata-se de uma Edição do Autor e traz na contra-capa a seguinte descrição:
Neste livro de Aldísio Filgueiras, você não encontrará endereços de infâncias que os anos não trazem mais, nem roteiros sentimentais produzidos por alguma febre de nostalgia. Em MANAUS - AS MUITAS CIDADES a linguagem é uma fratura exposta, sem concessões. Um texto instigante e provocador. Aqui, a cidade é o homem e seus fragmentos. Imagine a cidade no plural.
Abaixo segue na íntegra um dos poemas que compoe o livro:
AS MUITAS CIDADES
Uma cidade tão singular
que se realiza apenas
no plural: Manaos-Manaus.É de feira, a sua voz.
Mesmo em silêncio.
É de feira, a sua paz.
Como é sensível no sono
que a prostra ao longo
do rio, em suor e preguiça.
e assim é que se decide em dois.
Daí que a cidade --em si e em nós --
se dá e se toma de volta. Um dia sim
outro dia, não. Feito um músculo
que se contrai ao sole grita e grita e grita e grita.
E não se ouve.
A palavra é a sua ambição
-- em si e em nós.
Mas é o silêncio a sua expressão,
linguagem em cimento e pedra.
Esta é toda a sua dicção.
A audição da voz que está em nós
não se ouve: morde-se.
Tão singular
que o plural é audiência: nós.
Manaos-Manaus: uma questão de sentido.
A cidade que existe em nós
-- goela a dentro --
principia na água a sua história
e na água se apaga. A cidade
deságua de outro cenário.
Subúrbio.
A parede que ficou de pé
tem um olho no vazio.
Mas não há vizinhança.
A outra, ao cair de solidão,
Tinha o olho vazado: não pôde
ver que aquele chão (h)era
uma rua que logo seria ruína.
Um professor de pince-nez
recolheu o azul dos azulejos
e construiu um arquivo
de inconfessáveis sigilos.
Foi o bastante: inventou a memória
que é tudo o que fica da história.
A rua tomou outro rumo. Varandas
e telhados que acolhiam estrelas
e mangas viveram esse tempo de glória.
Quem viveu, viu -- em vão.
Meninos e meninas
surgiram dessas ruínas.Miseráveis meninos.
Miseráveis meninas.
Com raiva e com fome
armam o memorial do futuro:
não tem água que apague.
O rio continua
o seu delírio
de funcionário público.
(Até os rios cansam de correr para o mar)
A cidade que existe em nós
tem saudades do futuro.
Não tem água que se acabe.
Mas isto é para quem viverá.
Não existem águas paradas.
Não:
é verdade:
não é a água
que apaga:é a pedra
que esquece e acaba.
A cidade que existe em nós
não se erigiu sobre
cemitérios e índios.
Não violou os espaços
com pátrias e bandeiras.
Não ultrajou meninas e meninos.
Não estrangulou frutas e passarinhos.
Não inventou o crime dos gabinetes.
Não deu nome a fronteiras,
nem riscou sua intolerância nos mapas.
Não decretou seu próprio declínio.
Não não não não não não não não não e não.
Sim:
é metira:
tudo mentira
a cidade
que existe
em nós sequer
está no mapa.
A hipocrisia da pedra
não tem limites.
Ela veste o homem
e o engana com a eternidade.
Ela se chama cidade.
O seu brilho
não dura mais que uma noite.Não acende sequer uma estrela.
Basta olhá-la com firmeza
e o verniz da vaidade deixa-a
nua -- como o olho da rua.
por falar nisso: já notou
que o mundo se acaba ao seu redor?
Ninguém é de pedra.
Só a cidade
que engana até a eternidade.
A cidade fabrica
bairros
quando não se suportae não cabe em si mesma:
Aí, Manaus é Cidade Nova.
Aí, Manaus é Zumbi dos Palmares.
Aí, Manaus é Santa Etelvina
-- a que morreu sem deixar herança.
Aí, Manaos é Manaus:
uma questão de sentido.
Jamais a cidade que existe em nós.
Existe
uma cidade em nós
que aprende
a ter voz
... palavra e sentimento.
Nascer dói.
Aldísio Filgueiras |
"Aldísio Filgueiras, poeta e compositor, nasceu em Manaus, no dia 29 de janeiro de 1947. Sua estreia literária aconteceu em 1968, com o livro de poemas Estado de sítio, que, depois de editado, teve sua circulação proibida pela censura. Obra poética: Malária e outras canções malignas (Manaus, 1976); A República muda (Manaus, 1989); Manaus - as muitas cidades (Manaus, 1994); A Dança dos fantasmas (Manaus, 2001); Nova subúrbios (Manaus, 2004)."
Fonte: Poesia e poetas do Amazonas, org. Tenório Telles e Marcos Frfederico Krüger. Manaus: Editora Valer, 2006.
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