Donzela Desnuda ou Medusa?


Donzela Desnuda ou Medusa
Foto: Heitor Lopes
O SIMBOLISMO DA DONZELA DESNUDA

A análise simbólica, onde moram os aspectos conceituais e culturais adquiridos socialmente, é um tema que muito me atrai. E a escultura escolhida para esta análise nos brinda com um leque de possibilidades de significados: um êxtase para a busca dos sentidos. Então, vamos nos deter nos seus detalhes e buscar alguns significados simbólicos.
Esta escultura faz parte do acervo do Centro Cultural Palácio Rio Negro, localizado na Avenida Sete de Setembro, Centro HIstórico de Manaus. Está disposta nos jardins de entrada do prédio que foi morada de um dos barões da borracha. Não foram encontrados registros sobre sua procedência nem autoria. E isso só nos deixa mais curiosos sobre esta obra.

CORPO DESNUDO
Ao entrar em contato com a obra, seu poder de signo icônico já nos traz à mente diversos significados pela sua exposição de corpo desnudo.  Este, pode ser considerado como símbolo de sedução, provocação, pela posição em que se encontra, como a convidar o olhar do espectador, a passear por suas curvas sinuosas, estando assim mais ligado à luxúria e exibição vaidosa, que à pureza e inocência. Isso se dá pela posição em que se encontra e pelos diversos elementos simbólicos que lhe complementam.

AS SERPENTES
Entre os muitos que podemos encontrar para a serpente, elas conferem à nossa escultura, um sentido de maldade, sedução e traição, associando à mulher todas as figuras de divindades terríveis. A mulher é uma sedutora e representa o “principio do mal inerente a tudo o que é terreno”.

CACHO DE UVAS
Em seus cabelos, além das serpentes, é possível perceber um cacho de uvas. Esta fruta é um símbolo de Dionísio ou Baco, deus do vinho e das festas dionisíacas ou bacanais. Rituais que envolviam, além de muita bebida, sexo livre e diversos parceiros, sendo portanto, a festa dos prazeres carnais. Cirlot (1984), acrescenta que por ser um fruto, a uva nos remete à fertilidade e também, por sua ligação ao sangue, ao sacrifício.

O CRÂNIO
O medalhão em forma de crânio, que a figura traz em seu pescoço, pode fazer uma referência à inteligência e à morte, mas também simbolizam transitoriedade. Talvez afirmando que a beleza física é um atributo finito.

A MAÇÃ
A maçã ou o fruto que a figura segura em sua mão esquerda, nos remete ao fruto do “pecado original”, que levou Adão ao pecado e à conseqüente expulsão do paraíso; também pode significar desejo e o caminho para o conhecimento, já que descrita na Bíblia como “o fruto da árvore do bem e do mal”. Significa ainda fertilidade, amor, imortalidade e vida.
            A escultura aqui analisada, traz a maçã escondida na mesma mão que segura uma máscara de teatro. Este fruto não pode ser visto quando a figura é observada frontalmente. Como se a sedução se fizesse em etapas, primeiro com a nudez, depois com as serpentes e finalmente com o fruto do pecado. Como vimos até aqui, a obra nos remete, com todos os seus elementos, ao desencadeamento dos desejos materiais.

MÁSCARA DE TEATRO
Esta máscara pode significar a personificação de espíritos e poderes, bem como o “espetáculo da vida”, representado pelas máscaras teatrais no final da Antigüidade. Como elemento teatral ela significa disfarce. Embora seu significado simbólico seja bem maior que isso, chegando a representar a metamorfose.
            Inserida no emaranhado de outros elementos simbólicos, a máscara nos remete a pensar a metamorfose humana, a transformação do sedutor para outra coisa. A máscara ainda não foi colocada, ela se esconde assim como a maçã. Num desencadeamento que induz a pensar que a partir da sedução, depois um outro caráter habitará o corpo nu.

PUNHAL
A figura traz, oculto em sua mão direita, um punhal, acrescentando a lista dos elementos que não se mostram de mediato ao espectador, fazendo-nos pensar numa seqüência lógica e narrativa para a peça. Este punhal, se tomado como arma, significa poder e serve tanto para o ataque quanto para a defesa. No entanto, da forma como este aparece, nos faz crer que está preparado para o ataque. Com ele, se poderia pensar que o ciclo se fecha: o corpo nu e sensual chama, num primeiro momento à sedução pelo olhar; depois, as serpentes enfeitiçam, o fruto é oferecido, a máscara é colocada e o punhal se mostra fatal. Sedução, traição e fatalidade, seriam possíveis leituras para esta peça intrigante.




Medusa, detalhes: 1) cacho de uvas e serpentes; 2) serpentes e expressão séria; 3) e 4) - serpentes no braço e máscara de teatro; 5) fruto da mão esquerda; 6) serpente e medalhão em forma de caveira, no pescoço; 7) punhal na mão direita. Fotos: Heitor Lopes



TECENDO REDES DE SIGNIFICADOS SIMBÓLICOS

EVA

            É interessante buscar na literatura algumas referências à figura da Eva, porque a escultura, através de sua carga de elementos simbólicos (serpente e fruto), nos remete a essa personagem. O livro do Gênesis, que discorre sobre os primórdios da humanidade, no conta que Deus criou os céus e a terra e todas as coisas vivas. Ao ver que isso era bom, criou o homem à sua imagem e semelhança e de sua costela, Eva foi gerada.
            Eva representou uma companheira submissa desde sua concepção, uma vez que é gerada de uma de suas costelas. No entanto, mesmo submissa ao homem, cabe a ela a escolha pelo “conhecimento da verdade” através do fruto da árvore proibida. Então, Eva carrega para todo o sempre a culpa de ter levado o homem a pecar, de ter sido expulsa do paraíso e de ter começado uma vida de trabalho, sofrimento e morte para a humanidade. Eva, então, carrega o princípio da vida humana, da finitude humana.

MEDUSA

Não foi sempre que Medusa carregou o fardo pelo qual é conhecida. Era muito bela e imortal, mas conseguiu enfurecer a poderosa deusa Atena ao copular com Poseidon (deus do Mar) em um de seus templos. Como castigo Atena a transformou, junto com suas irmãs, em criaturas medonhas, megeras repugnantes. Contrastando com a beleza de outrora, agora apresentavam a pele escamosa, cabelos em forma de serpentes venenosas, mãos de bronze e asas de ouro; suas línguas eram protuberantes, cercada por presas de javali. Medusa foi a mais castigada, virou mortal e mais petrificadora das três.
O olhar de medusa foi o seu pior castigo. Por transformar em pedra tudo o que a fitasse, este a impedia de manter contato com qualquer outra criatura. Vivia reclusa com suas irmãs no extremo do mundo e sua morada formava fronteira com o reino das trevas. Ao seu redor se espalhavam figuras petrificadas de homens e animais que, por descuido, olharam-lhe.
Medusa foi morta por Perseu, fundador de Micenas. Quando criança, junto com sua mãe Dânea, foi lançado ao mar por seu avô, o rei de Argos – Acrísio –, temendo a concretização de uma profecia: Perseu o mataria. Foram resgatados e entregues ao rei de Sérifo, Polidectes. Passado anos, já adulto, Perseu recebeu a missão de matar Medusa e entregar sua cabeça a Atena. Auxiliado por esta, equipou-se com sandálias aladas, elmo de invisibilidade, escudo brilhante e a espada de Hermes, e seguiu para o reino das Górgonas. Fazendo uso de suas ferramentas mágicas, conseguiu aproximar-se de Medusa, sem ser petrificado, e a decapitou. Do sangue, que escorria da cabeça decapitada, formou-se dois seres, o gigante Crisaor e o cavalo Pégaso. Perseu recolheu o sangue de Medusa; da veia esquerda saiu um poderoso veneno, da direita um remédio capaz de ressuscitar os mortos.
            Da aparência mítica de Medusa, podemos abstrair inúmeros significados simbólicos e percebemos o quanto são importantes para se entender o homem no contexto social e psíquico. Medusa trazia em si o remédio da vida, mas sempre fez uso do veneno da morte. Da mesma forma a mulher foi vista pela sociedade em vários períodos da história, e ainda hoje. Tem o poder de dar à luz, mas sempre foi relegada ao segundo plano por ser considerada uma criatura vil e traiçoeira. Esse pensamento é fruto de uma sociedade patriarcal que sempre reprimiu a sabedoria e os poderes sacerdotais e xamânicos femininos.
O mito de Medusa nos alerta sobre nosso mundo interior, o inconsciente. Se entrarmos despreparados nesse mundo, podemos ficar paralisados com o que lá encontraremos. A culpa é o nosso olhar petrificante e o arrependimento é a cura imediata.


O MITO DA FÊMEA FATAL

Algumas leituras podem ser feitas a respeito dessas personagens femininas, tão recorrentes na história da arte. No entanto, é preciso entender um pouco porque elas ganham tão grande destaque no final do século XIX e início do século XX. No final do romantismo, primeira metade do século XIX, a figura da mulher fatal disputava espaço com um homem conquistador, representado pelo Don Juan.           
            Na segunda metade do século XIX, começam a ganhar destaque as versões femininas dessa decadência moral. A literatura e o teatro, popularizaram essas personagens conferindo-lhes um destaque dramático aos seus aspectos diabólicos e sedutores.
            É nesse momento que se constrói essa imagem da mulher, como responsável pela decadência do homem e por todos os males que assolam a humanidade. A escultura aqui analisada, nos oferece a possível materialização desse pensamento, sendo o retrato da Medusa ou de Eva. Em todos os elementos há um caráter de dualidade, valores morais que tendem para o bem e para o mal. No entanto, sabendo que no período provável da construção da peça (final do século XIX e início do século XX), o pensamento corrente dava à mulher esse papel de fêmea fatal, a leitura dos signos buscou essa teia de significados.


COMENTÁRIOS FINAIS

            Em todos os tempos a arte se apresenta como expressão do humano. O artista capta os humores do seu tempo e o transforma em algo material e duradouro. Os pensamentos se modificam, mas a arte permanece para nos lembrar do processo. E em um momento em que a leitura da imagem é o que há de mais evidente e explorado, vale a pena retomar nossas obras públicas e buscar nelas a relação com nosso passado, construindo assim, a nossa história. Assim como vale a pena passear pelos logradouros públicos da cidade e observar as obras ali colocadas. Elas têm um porquê de estarem ali, trazem uma história. Seria interessante sair em busca desses significados e relacionar com a história da cidade, assim perceberíamos o que temos de particular e universal.
O mito da fêmea fatal, representado na escultura do Centro Cultural Palácio Rio Negro, permanece até hoje, nas músicas, nos filmes, nos comerciais de TV, nas novelas. É a mulher, sedutora que desencadeia todo o mal. O corpo feminino hoje é um dos principais apelos da comunicação de massa, se tornou produto. É um outro processo de mudança de mentalidade: de fêmea fatal para produto comercial. Mas daí, já são outros significados que exigem outra leitura. Contudo, o estudo da semiótica peirceana pode ser um caminho para a busca desses sentidos.
Então inté!
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Este texto é parte integrante de um artigo publicado inicialmente na Revista FMF: Educação, Sociedade e Meio Ambiente. Volume 7. Nº 2. Jul/Dez 2007.

Segue o link para baixar o artigo completo:
http://www.slideshare.net/evanynascimento/leitura-semitica-da-donzela-desnuda

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