"É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus" - Edgar Morin

 

É hora de mudarmos de via - Edgar Morin

Leio Edgar Morin desde quando comecei a pesquisar sobre o pensamento complexo e isso tem alguns anos, acho que desde 2003, momento em que passei a lecionar no Ensino Superior. Depois me encantei com "Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro" e não me separei mais dessas ideias, incorporando-as à minha prática dentro e fora da sala de aula. Agora me surpreendo com esse texto, escrito quando o autor está com seus 99 anos. Um texto como um comentário de alguém sentado em uma cadeira de balanço, olhando para o mundo caótico e pensando: Criaturas, eu já venho avisando vocês desde os anos 1990. Mas tudo bem! Aqui vai mais uma tentativa.

Edgar Morin retoma e atualiza, nesse ensaio de 97 páginas, os elementos e ideias que já havia discutido em "Os sete saberes necessários à educação do futuro": a educação planetária, a revisão da educação como a pregamos, a condição humana, a identidade terrena e planetária, a retomada do humanismo e o impacto das incertezas. 

Em síntese ele começa o livro com um "Preâmbulo" em que trata sobre as grandes crises desde a gripe espanhola, colocando-se como sujeito histórico. E é surpreendente porque ele tem 99 anos e, de várias maneiras, acompanhou todas essas epidemias, revoluções e guerras. Depois fala de 15 lições do coronavirus trazendo em tópicos, comentários rápidos. Aí traz os desafios do pós-corona, em 9 tópicos e encerra com a ideia central do livro que é "mudar de via", discutidos em 5 tópicos. Todo o texto é muito leve, como uma conversa. 

O livro provavelmente foi escrito ainda no primeiro semestre de 2020, mas traz uma certa paz ao apontar possibilidades de mudança e transformação nesse momento em que tudo parece perdido e o ódio toma conta das nossas emoções. É um texto que renova a esperança e a força para continuar na resistência. Continuar acreditando que há caminhos possíveis, pela educação, pela arte, pela poesia, pela beleza, pelo reencontro com a nossa identidade humana, terrena e planetária.

Diálogos

Esse texto dialoga bem com as obras do Ailton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo; A vida não é útil) e com Boaventura de Souza Santos, especialmente o recém-lançado "O futuro começa agora: da pandemia à utopia". 

São discussões muito pertinentes para a sala de aula, no contexto em que trabalho que é na formação de professores. Seguindo os princípios de Morin: da ampliação do olhar transdisciplinar da educação, do saber-se complexo, da afetividade como racionalidade possível, do reeducar os educadores, do reconectar-se com a terra mãe.

 

 

É hora de mudarmos de via - contracapa

Fichamento

A seguir, alguns trechos que marquei ao longo da leitura.

As 15 lições do coronavírus

1. Lição sobre nossa existência
2. Lição sobre a condição humana
3. Lição sobre a incerteza de nossa vida
4. Lição sobre nossa relação com a morte
5. Lição sobre nossa civilização
6. Lição sobre o despertar da solidariedade
7. Lição sobre a desigualdade social no isolamento
8. Lição sobre a diversidade das situações e da gestão da epidemia no mundo
9. Lição sobre a natureza de uma crise
10. Lição sobre a ciência e a medicina
11. Uma crise da inteligência
12. Lições sobre as insuficiências de reflexão e ação política
13. Lição sobre deslocalizações e dependência nacional
14. Lição sobre a crise da Europa
15. Lição sobre o planeta em crise


Os 9 desafios do pós-corona

1. Desafio existencial
2. Desafio da crise política
3. Desafio de uma globalização em crise
4. Desafio da crise da democracia
5. O desafio digital
6. O desafio da proteção ecológica
7. O desafio da crise econômica
8. O desafio das incertezas
9. O perigo de um grande retrocesso


As 5 reflexões sobre "Mudar de via"

1. Uma política da nação
2. Uma política civilizacional
3. Uma política da humanidade
4. Uma política da terra
5. Por um humanismo regenerado


Trechos que eu marquei

"...a novidade radical da Covid-19 está no fato de ele dar origem a uma megacrise deita da combinação de crises políticas, econômicas, sociais, ecológicas, nacionais, planetárias..." (pág21)

"A primeira revelação fulminante dessa crise inédita é que tudo o que parecia separado é inseparável". (pág21)

"Esse vazio nos lembra cruelmente que a morte de um ente querido exige que ele seja acompanhado até o sepultamento ou a cremação. Os sobreviventes precisam dividir a dor numa comunhão. Precisam dos ritos de adeus e de uma cerimônia coletiva que comporte a refeição fúnebre. A falta de cerimônia consoladora levou as pessoas, inclusive as laicas como eu, a sentir a necessidade de rituais que façam a pessoa morta reviver intensamente em nosso espírito e atenuem a dor numa espécie de eucaristia". (pág27)

Sobre a lição 8, em que discute a diversidade de gestão:
"Outros, ao contrário, passam por terríveis ondas de contaminação e óbitos, como, em primeiro lugar, o Brasil, que vive uma tragédia por ter no comando um presidente irresponsável..." (pág30)

"Essa nova Vi comporta:
- uma política nacional;
- uma política civilizacional;
- uma política da humanidade;
- uma política da Terra;
- um humanismo regenerado;"
(pág56)

"Reforma da democracia: participação cidadã:
... Também seria útil multiplicar o número de universidades populares, que oferecessem aos cidadãos uma iniciação nas ciências políticas, sociológicas, econômicas e jurídicas". (pág64)

"A lógica da máquina artificial, que já eliminou porteiros, guardas, funcionários em estações, trens, metrôs, pedágios, estacionamentos e até nas caixas de alguns grandes supermercados, tende a fazer da vida social uma gigantesca máquina automática, que a inteligência artificial faria crescer ao extremo". (pág73)

"As pequenas cidades se desertificam, as terras se degradam sob os efeitos da agricultura industrial, que produz alimentos insípidos e pouco saudáveis. As cidades sofrem os danos da anonimização. Estendem-se cidades-escritório e subúrbios-dormitório. Os bairros definham, multiplicam-se os grandes conjuntos anônimos. Os porteiros são substituídos por cérberos. O pequeno comércio local vai desaparecendo aos poucos. O alimento congelado, os supermercados, a telecompra deminuem as oportunidades de intercâmbio nas ruas comerciais e destroem as relações de confiança entre fornecedores e fregueses, assim como a conversa fiada e os mexericos de bairro. A isso se soma a asfixia causada pela circulação de automóveis, que por si mesmos contribuem para a sufocação da sociabilidade, para a irritação das mentes e dos pulmões". (pág73-74)

"A qualidade de vida se traduz por bem-estar no sentido existencial, e não apenas material. Implica a qualidade das relações com o próximo e a poesia dos envolvimentos afetivos e afetuosos". (pág75)

"A política civilizacional contribui para a política ecológica, que contribui para a política civilizacional. Contribui para a política da humanidade, que contribui para a política civilizacional. A política da nação contribui para a política da humanidade, que contribui para a validade das nações. Todas essas vias reformadoras, interativas e interprodutivas poderiam conjugar-se para constituir a Via". (pág76)

"Uma política da humanidade comportaria a preocupação de salvaguardar indissociavelmente a unidade e a diversidade humana: o tesouro da unidade humana é a diversidade humana, o tesouro da diversidade é  a unidade humana. Ela estaria atenta a preservar as culturas ameaçadas pela homogeneização e pela padronização". (pág77)

"A política da humanidade é também uma política humanitária em escala planetária, que deveria mobilizar não só os recursos materiais, mas também as juventudes dos chamados países desenvolvidos, para um serviço cívico planetário, que substitua os serviços militares, a fim de ajudar in loco as populações necessitadas". (pág79)

"... pode ser que a salvação chegue na beira do abismo". (pág79)

Falando de política de humanidade e se referindo à "proteção aos povos primígenos":
"Os povos indígenas sobrevivente do Canadá e Estados Unidos, unindo-se e resistindo, conseguiram salvar pelo menos a identidade e uma parte de sua cultura. Os amazônicos, apesar da lei que reconhece seus territórios, desde que se instalou o novo governo federal no Brasil estão fadados ao extermínio. Até porque o coronavírus se propagou rapidamente entre os povos primígenos, que têm poucas defesas imunológicas contra esse tipo de vírus". (pág82)

"A conscientização da comunhão de destinos terrestres entre a natureza viva e a aventura humana deve tornar-se um acontecimento importante de nosso tempo: devemos nos sentir solidários com este planeta, pois nossa vida está ligada à sua existência; precisamos não só arrumá-lo, mas também poupá-lo: precisamos reconhecer nossa filiação biológica e nossa filiação ontológica; é o cordão umbilical que precisa ser reatado". (pág84)

"Podemos depreender os imperativos da reforma pessoal:
- conhecer segundo o conhecimento complexo, que interliga os saberes para conceber os problemas fundamentais e globais;
- pensar segundo a razão sensível, que realiza a dialética permanente razão/paixão;
- agir segundo o imperativo ético primeiro de responsabilidade/solidariedade;
- viver segundo a necessidade poética de amor, comunhão e encantamento estético.
Os objetivos do humanismo, em suma, devem realizar-se em cada um". (pág86)

"O amor deve ser introduzido, em relação indissolúvel e complexa, no princípio de racionalidade. Deve constituir um componente da racionalidade complexa". (pág87)




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