Aos professores - Música: Minha Casa - Zeca Baleiro

Há anos sou fã das músicas do Zeca Baleiro. Ouço por horas seguidas. E em muitos momentos de ócio criativo, ouso refletir sobre o sentido das letras, pra mim. Esta reflexão foi escrita há 3 anos. É uma análise datada e mergulhada em romantismo e idealismo. Resolvi partilhar hoje, em homenagem aos meus colegas professores românticos e idealistas, que ainda acreditam que podem mudar o mundo! E ai do mundo, se os professores não acreditassem nisso!

Esta música faz parte do cd Líricas. Particularmente acho que não teria título mais cabível a esta coleção de músicas que são tão poéticas e suavemente lindas, como as pinturas de Renoir. E o cd começa justamente com a música Minha Casa. Ao ouvi-la com mais atenção e calma me emocionei do começo ao fim. E concordei com tudo. Mas vamos por partes.
           
é mais fácil cultuar os mortos que os vivos
Essa frase não precisa nem de comentários mas, vou fazer assim mesmo. Quantas mentes brilhantes nós só descobrimos quando perdemos? É como se vê quando se estuda sobre Patrimônio: o vazio que causa a derrubada de um prédio antigo é que vai determinar o grau de importância que ele tinha.

mais fácil viver de sombras que de sóis
Parece a nossa capacidade maior em reclamar e se concentrar nos problemas, que vislumbrar uma luz que torne valiosa a luta. Na nossa área da educação, quando nos detemos a lamentar sobre nossos salários e esquecemos que nosso trabalho pode vencer essa sombra e brilhar.

é mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro
Gostei muito da combinação mimeografar / passado e imprimir / futuro. Parece que ele está falando para nós professores que continuamos repetindo na sala de aula o que aprendemos há décadas, sem nos importarmos com as mentes jovens que necessitam de conhecimento revisto e ampliado. Mas é mais fácil pegar o livro ao qual estamos acostumados a trabalhar durante anos a fio, que procurar em bancas de revistas, jornais, televisão, cds, algo novo para usar como livro didático.

não quero ser triste
como o poeta que envelhece
lendo Maiakovski na loja de conveniência
Pensei em quem aduba suas idéias, faz projetos e não sai do seu casulo para produzir. Conhece, acumula informações, mas não tem atitude, não dá, como se diz “a cara a tapa”. Por medo de estar errado ou de estar certo. Pessoas que são tristes por medo de arriscar. Ou que vivem escravos da conveniência.

não quero ser alegre
como o cão que sai a passear
com o seu dono alegre
sob o sol de domingo
Vi aqui, aqueles que são alegres sem motivo algum, sem ter consciência do que fazem, sem objetivos de vida, sem sonhos, sem projetos. A vida banal e sem significado.

nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda
Aqui, lembra quem fala muito e não faz metade do que propaga.

Quero no escuro
como um cego tatear estrelas distraídas
Esta é a parte da música que mais me emociona, que me tira lágrimas a cada vez que a ouço. Pela sua profundidade, sensibilidade... algo de uma magia indescritível! Como a dizer das pessoas que buscam o improvável, o impossível. Nem sei como explicar porque essa frase me emociona tanto... Ela me remete à pintura de Velázques, de um bufão sorrindo tendo ao fundo um céu estrelado. O sorriso é tão comovente... e nos faz pensar “será que ele é cego?”, “qual o motivo do seu sorriso?” e “porque este sorriso nos afeta tanto?”.

amoras silvestres no passeio público
Esta frase dá a sensação de paraíso, de bem estar coletivo, de vida perfeita. Dá a sensação de um mundo que não existe no plano real: quando teríamos amoras silvestres em um passeio público? Mas ao mesmo tempo, é um mundo que vive dentro dos que sonham.Vive no sonho do poeta.

amores secretos debaixo dos guarda-chuvas
Também o improvável: como podem se esconder debaixo de um guarda-chuva? Mas também, o mostrar-se pouco, o esconder-se pouco, o deixar na expectativa.

tempestades que não param
pára-raios quem não tem
mesmo que não venha o trem não posso parar
Esta parte foi uma das que mais me chamou a atenção para entender melhor a música inteira. Todos temos problemas, dificuldades, mas também temos força para superá-las. E nos tornamos mais fortes à medida que conseguimos superar essas dificuldades. É como um ditado popular ‘Deus dá o frio conforme o cobertor’. Para as tempestades que não param, nós temos os pára-raios para nos defender. E não podemos nos escorar no problema, é preciso resolvê-lo e continuar. Ainda que pareça uma luta difícil, não se pode desistir. Lembrando nosso fardo de professores, mesmo que não colhamos os frutos imediatos do nosso trabalho, não devemos desanimar. Mesmo que não venha o trem não posso parar.

Vejo o mundo passar
como passa  uma escola de samba que atravessa
pergunto onde estão teus tamborins
Lembra até o Toquinho com a sua ‘Aquarela’: que somos como uma aquarela que um dia enfim descolorirá. A escola de samba passa... o tempo passa... nossa vida passa... Mas onde estão os nossos tamborins? Onde está nossa alegria de viver? Onde está o sentido desta passagem, deste desfile? Ele é único e não tem replay.

Sentado na porta de minha casa
a mesma e única casa
a casa onde eu sempre morei                                   

A casa é o que sou? De onde saio e pra onde sempre volto? É onde guardamos todos os nossos medos, anseios, dúvidas, problemas e soluções? É onde depositamos nossos amores e convivemos com a solidão? É onde formamos nosso pensamento? É onde descansamos e buscamos forças para o dia-a-dia? Onde é a nossa casa? Temos muitas casas? O que representa a casa na nossa vida? Como está a casa da nossa vida? Onde, na verdade, sempre moramos? Será que escondemos nosso endereço?

Ainda busco o sentido da casa nessa música. Por vezes me parece uma crítica ao nosso comodismo, conformismo. Mas acredito mais ser esta “casa”, a metáfora da essência humana. Em todo tempo e lugar o homem é o mesmo na sua essência. Isso é o que mantêm atuais as tragédias de Shakespeare. Anjos e demônios habitam o homem. Mas ele escolhe seu caminho.


Na sala de aula

Esse tipo de atividade pode ser levada também para a sala de aula. Já fiz isso muitas vezes com alunos do Ensino Médio, para trabalhar a disciplina de Artes e de História. E também usei análise de música na faculdade, no curso de Design, para trabalhar a disciplina Estética e História da Arte, e Semiótica.

Pedir que os alunos façam a análise de uma música que eles gostam é conhecer um pouco mais do perfil desses alunos e suas concepções de mundo. O trabalho pode ser associado a painéis com ilustrações para a música (principalmente se o trabalho for feito com crianças).

Neste exercício com a música do Zeca Baleiro, fiz uma leitura mais simbólica e pessoal. Mas a música pode render muito em todas as disciplinas. É só experimentar!

Comentários

  1. Olá Eva! Achei sua análisa da música muito interessante e concordo em algumas partes. No entanto, acho que sua visão é muito pessoal. Vejo essa música numa visão mais ampla, onde o eu lírico simplesmente é uma pessoa que sai de casa e que relata as dificuldades que enfrentará, mas também os seus anseios. Enfim, tenho um blog apenas sobre a análise de músicas e, embora não tenha tamanho brilhantismo para descrever as canções, como você, faço o que posso.

    http://interpretacaopessoal.blogspot.com/

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  2. Olá, Thamirys Pereira!
    Obrigada pela leitura do meu texto! A ideia é essa mesma, ser mais pessoal e atingir o universal em alguns pontos, como parece que consegui. Faz parte de algumas análises que gosto de fazer... mania de querer achar um significado para tudo na vida. Já visualizei seu blog e gostei muito! Vou acessar sempre.

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  3. Olá professora, gostei muito da análise dessa música. Amo música, mas não parei para analisar as letras. Uma bela reflexão para os professores, nesse dia que é dedicado a essa profissão tão linda. Estou a refletir sobre essa parte da música ''é mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro, quero imprimir o futuro como professora... abraços professora.

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